5. A força normativa dos fatos – declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade
Todo o quadro jurídico anteriormente comentado aponta para a conclusão
de que a convocação de plebiscito, somente agora, no ano de 2013,
destinado à deliberação popular direta sobre a que Município pertencem,
legalmente, as áreas do Mosqueiro, Areia Branca, São José e Terra Dura
(Santa Maria), além dos núcleos habitacionais Santa Maria, Maria do
Carmo e Antônio Carlos Valadares: se ao Município de Aracaju ou ao
Município de São Cristóvão, não terá o condão de resolver o problema.
Juridicamente falando, e como já ficou claro na abordagem efetuada nas
parte I e II deste artigo, a alteração dos limites territoriais dos
Municípios de Aracaju e São Cristóvão – que materializou, em boa
verdade, incorporação ao Município de Aracaju de áreas antes
pertencentes ao Município de São Cristóvão – se deu em desconformidade
com as exigências da Constituição Federal.
Todavia, uma coisa é a eventual declaração de inconstitucionalidade de
uma norma jurídica (no caso, a norma do Art. 37 do Ato das Disposições
Transitórias da Constituição do Estado de Sergipe, que já foi
incidentalmente declarada inconstitucional pelo TJ/SE); coisa diversa
são os efeitos dessa declaração.
Afinal, não se pode desconsiderar a realidade fática de que as áreas do
Mosqueiro, Areia Branca, São José e Terra Dura (Santa Maria), além dos
núcleos habitacionais Santa Maria, Maria do Carmo e Antônio Carlos
Valadares, há quase vinte e quatro anos, são consideradas pertencentes
ao Município de Aracaju; realidade fática evidenciada em diversas
situações, desde registros civis de nascimento e pagamento de tributos
ao Município de Aracaju, passando pela execução de serviços públicos e
implementação de políticas públicas por parte da Administração Pública
do Município de Aracaju naquelas localidades, até a participação dos
seus cidadãos na vida política do Município de Aracaju, a exemplo do
exercício do direito do voto e do direito de ser votado na circunscrição
eleitoral do Município de Aracaju.
Eventual declaração de invalidade/nulidade da norma estadual, quase 24
(vinte e quatro) anos após a sua integral vigência e aplicabilidade de
seus efeitos concretos, causará à ordem jurídica e à população um trauma
muito maior do que aquele que se pretende coibir com sua permanência.
Trata-se de harmonizar a realidade fática com a ordem jurídica
constitucional, homenageando o respeito à lealdade e à boa-fé dos
administrados e, sobretudo, o primado da segurança jurídica.
Segurança jurídica a se traduzir na garantia fundamental de todos os
brasileiros e estrangeiros residentes no país de conhecer, por
antecipação, as conseqüências de seus próprios atos.
O problema da segurança jurídica apresenta-se ainda mais agudo quando o
intérprete se depara com o ato jurídico inválido. É que, se o ato é
inválido, significa que é desconforme ao Direito. Reconhecida a sua
não-validade, é fulminado da ordem jurídica. E fulminado com eficácia ex
tunc. Ou seja: a decisão que declara a sua invalidade opera efeitos
retroativos. Isso porque, em princípio, não deve produzir efeitos
jurídicos um ato violador do Direito. Entretanto, não é possível
desconsiderar a realidade de que aquele ato vigorou, durante certo
tempo. E, no que vigorou, produziu efeitos, vinculou condutas, criou
obrigações. Em suma, interferiu em relações jurídicas. Daí CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO ter esclarecido que:
“Os atos inválidos, inexistentes, nulos ou anuláveis não deveriam ser produzidos. Por isso não deveriam produzir efeitos. Mas o fato é que são editados atos inválidos (inexistentes, nulos e anuláveis) e que produzem efeitos jurídicos. Podem produzi-los até mesmo per omnia secula, se o vício não for descoberto ou se ninguém o impugnar.
É errado, portanto, dizer-se que os atos nulos não produzem efeitos. Aliás, ninguém cogitaria da anulação deles ou de declará-los nulos se não fora para fulminar os efeitos que já produziram ou que podem ainda vir a produzir. De resto, os atos nulos e os anuláveis, mesmo depois de invalidados, produzem uma série de efeitos. Assim, por exemplo, respeitam-se os efeitos que atingiram terceiros de boa-fé. É o que sucede quanto aos atos praticados pelo chamado ‘funcionário de fato’, ou seja, aquele que foi irregularmente preposto em cargo público.
Além disto, se o ato nulo ou anulável produziu relação jurídica da qual resultaram prestações do administrado (pense-se em certos casos de permissão de uso de bem público ou de prestação de serviço público) e o administrado não concorreu para o vício do ato, estando de boa-fé, a invalidação do ato não pode resultar em locupletamento da Administração à custa do administrado e causar-lhe um dano injusto em relação a efeitos patrimoniais passados” (destaques do autor) (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 424-425).
No caso presente, o respeito à segurança jurídica (como subprincípio do Estado de Direito) e o prestígio à lealdade e boa-fé e à confiança dos administrados impõem – no caso em exame, repita-se mais uma vez – a preservação dos efeitos de um ato originalmente inválido, sob o ângulo estritamente formal.
Em casos como esses, a prudência recomenda, mesmo diante de eventual
inconstitucionalidade, em homenagem à segurança jurídica, a adoção da
técnica da “declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade”.
Técnica essa que, no atual estágio de desenvolvimento e amadurecimento
da jurisdição constitucional brasileira, além de encontrar respaldo
doutrinário e jurisprudencial, tem expressa guarida na legislação.
Lei nº 9.868/99: Art. 27. Ao declarar a
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões
de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o
Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Lei nº 9.882/99: Art. 11. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de argüição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração
ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em
julgado ou de outro momento que venha a ser fixado. (grifou-se)
Como bem explica o Ministro do Supremo Tribunal Federal, GILMAR MENDES, em obra doutrinária:
“O princípio da nulidade somente há de ser afastado se se puder
demonstrar, com base numa ponderação concreta, que a declaração de
inconstitucionalidade ortodoxa envolveria o sacrifício da segurança
jurídica ou de outro valor constitucional materializável sob a forma de
interesse social.” (grifou-se) (Curso de Direito Constitucional. 2. ed.
São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1267-1268).
E essa técnica de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade já foi adotada pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, inclusive a partir do reconhecimento da força jurídico-normativa dos fatos, inclusive em casos de criação irregular de municípios:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 6.893, de 28 de janeiro
de 1998, do Estado do Mato Grosso, que criou o Município de Santo
Antônio do Leste. Inconstitucionalidade de lei estadual posterior à EC
15/96. Ausência de lei complementar federal prevista no texto
constitucional. Afronta ao disposto no artigo 18, § 4º, da Constituição
do Brasil. Omissão do Poder Legislativo. Existência de fato.
Situação consolidada. Princípio da segurança jurídica. Situação de
exceção, estado de exceção. A exceção não se subtrai à norma, mas esta,
suspendendo-se, dá lugar à exceção — apenas assim ela se constitui como
regra, mantendo-se em relação com a exceção. O Município
foi efetivamente criado e assumiu existência de fato, como ente
federativo. Existência de fato do Município, decorrente da decisão
política que importou na sua instalação como ente federativo dotado de
autonomia. Situação excepcional consolidada, de caráter
institucional, político. Hipótese que consubstancia reconhecimento e
acolhimento da força normativa dos fatos. Esta Corte não pode limitar-se
à prática de mero exercício de subsunção. A situação de exceção,
situação consolidada — embora ainda não jurídica — não pode ser
desconsiderada. A exceção resulta de omissão do Poder
Legislativo, visto que o impedimento de criação, incorporação, fusão e
desmembramento de Municípios, desde a promulgação da Emenda
Constitucional n. 15, em 12 de setembro de 1996, deve-se à ausência de
lei complementar federal. Omissão do Congresso Nacional que inviabiliza o
que a Constituição autoriza: a criação de Município. A não edição da
lei complementar dentro de um prazo razoável consubstancia autêntica
violação da ordem constitucional. A criação do Município de Santo
Antônio do Leste importa, tal como se deu, uma situação excepcional não
prevista pelo direito positivo. O estado de exceção é uma zona de
indiferença entre o caos e o estado da normalidade. Não é a
exceção que se subtrai à norma, mas a norma que, suspendendo-se, dá
lugar à exceção — apenas desse modo ela se constitui como regra,
mantendo-se em relação com a exceção. Ao Supremo Tribunal Federal
incumbe decidir regulando também essas situações de exceção. Não se
afasta do ordenamento, ao fazê-lo, eis que aplica a norma à exceção
desaplicando-a, isto é, retirando-a da exceção. Cumpre verificar o que
menos compromete a força normativa futura da Constituição e sua função
de estabilização. No aparente conflito de
inconstitucionalidades impor-se-ia o reconhecimento da existência válida
do Município, a fim de que se afaste a agressão à federação. O
princípio da segurança jurídica prospera em benefício da preservação do
Município. Princípio da continuidade do Estado. Julgamento no qual foi
considerada a decisão desta Corte no MI n. 725, quando determinado que o
Congresso Nacional, no prazo de dezoito meses, ao editar a lei
complementar federal referida no § 4º do artigo <18> da
Constituição do Brasil, considere, reconhecendo-a, a existência
consolidada do Município de Luís Eduardo Magalhães. Declaração de inconstitucionalidade da lei estadual sem pronúncia de sua nulidade.
Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade,
mas não pronunciar a nulidade pelo prazo de 24 meses, Lei n. 6.893, de
28 de janeiro de 1998, do Estado do Mato Grosso." (grifou-se) (ADI
3.316, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 9-5-07, DJ de 29-6-07);
"Ação direta de inconstitucionalidade. Lei n. 6.893, de 28
de janeiro de 1998, do Estado do Mato Grosso, que criou o Município de
Santo Antônio do Leste. Inconstitucionalidade de lei estadual posterior à
EC 15/96. Ausência de lei complementar federal prevista no
texto constitucional. Afronta ao disposto no artigo 18, § 4º, da
Constituição do Brasil. Omissão do Poder Legislativo. Existência de fato. Situação consolidada. Princípio da segurança jurídica. Situação de exceção, estado de exceção.
A exceção não se subtrai à norma, mas esta, suspendendo-se, dá lugar à
exceção — apenas assim ela se constitui como regra, mantendo-se em
relação com a exceção. (...) Declaração de inconstitucionalidade da lei estadual sem pronúncia de sua nulidade.
Ação direta julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade,
mas não pronunciar a nulidade pelo prazo de 24 meses, Lei n. 6.893, de
28 de janeiro de 1998, do Estado do Mato Grosso." (grifou-se) (ADI
3.316, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 9-5-07, DJ de 29-6-07).
É exatamente o que se passa no caso em exame. O quadro fático
consolidado e estabilizado há quase vinte e quatro anos, de total
boa-fé, impõe, por imperativas razões de segurança jurídica e interesse
social, a não pronúncia de nulidade da norma do Art. 37 do ADCT da
Constituição do Estado de Sergipe.
Declarar a inconstitucionalidade da norma acima indicada, com pronúncia
de sua nulidade, seria instalar o caos na vida de um enorme número de
pessoas que se valem, de boa-fé, da incidência dos seus comandos,
presumivelmente válidos; seria também gerar o caos administrativo e
social, porque é de conhecimento geral que o Município de São Cristóvão
não possui, hoje, mínima capacidade financeira e gerencial para assumir a
prestação de serviços públicoS e execução de políticas públicas nas
áreas do Mosqueiro, Areia Branca, São José e Terra Dura (Santa Maria),
além dos núcleos habitacionais Santa Maria, Maria do Carmo e Antônio
Carlos Valadares.
Por outro lado, não pronunciar a invalidade do Art. 37 do ADCT da
Constituição Estadual (ainda que se declare a sua
inconstitucionalidade), não causará qualquer abalo significativo à ordem
jurídica, ao interesse social e à coletividade. Isso porque permanecerá
a situação atual, de vinculação das áreas mencionadas ao Município de
Aracaju, que, certamente, por meio de sua competente Procuradoria-Geral,
já apresentou toda essa argumentação jurídica, baseada na realidade
fática, ao Supremo Tribunal Federal, a quem caberá, assim entendemos,
equacionar em definitivo essa já por demais alongada controvérsia.
Fonte: Por Maurício Gentil
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