quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O curioso caso do comedor de jia

* Artigo de Carolline Acioli Oliveira Andrade

O ano era 1849. Em São Cristóvão, capital de Sergipe, a sociedade está em polvorosa diante dos últimos acontecimentos. O admirado escrivão Bartholomeu José Correia Beija-Flor jaz em seu leito, fatalmente doente. Beija-Flor era conhecido tanto por sua competência no trabalho, quanto pela excentricidade de paladar, pois gostava de saborear quitutes os mais diversos: guisado de muçurana, sariguê passado no óleo, cação martelo com molho de vinagre, croquete de lesma e, um de seus favoritos, fritada de jia com cozido de ovos de tartaruga. Foi após comer o “maná jiático” que ele caiu de cama.

A família fez de tudo para aliviar as dores do convalescente, ninguém sabia explicar a razão de todo aquele infortúnio. Até que, um dia, a filha de Beija-Flor encontra um pó branco no chá que o pai estava tomando. Imediatamente, conclui: o pai havia sido vítima de envenenamento. A investigação começa, obstinada e decidida a encontrar um culpado. E o bode expiatório acabou sendo a jovem negra Hilária, uma escrava doméstica que trabalhava para a família Beija-Flor.

Hilária negava ter arquitetado a morte do seu senhor. O delegado, porém, estava disposto a comprovar a culpa da negra. Hilária foi pressionada, humilhada e espancada até que confessasse que havia colocado o veneno no chá do seu senhor. Mas a história não termina aí. Os órgãos de Beija-Flor foram levados a Salvador para um exame toxicológico. Este, realizado por renomados legistas, comprovou que não havia nenhum componente tóxico no corpo do falecido. Uma grande polêmica tomou a cidade quando o laudo foi lido. Insatisfeitos, os acusadores da negra retomaram o processo, decididos a invalidar o relatório da autópsia. O delegado e o promotor colheram depoimentos de várias testemunhas e, apesar de todas as contradições do processo e da dúvida sobre a veracidade de alguns testemunhos, Hilária foi condenada a morte.

Longe de ser um conto fictício, toda essa trama foi real e está relatada em forma de romance pelo historiador sergipano Pedrinho dos Santos na obra intitulada “O Comedor de Jia”, de 2006. Em uma linguagem simples e narração detalhista, o autor faz do curioso caso do comedor de jia um fato que leva a sociedade sergipana atual a voltar-se para o passado e refletir sobre sua própria história. O autor levanta uma crítica veemente contra a presença do preconceito como um princípio social comum e até mesmo justificável da escravidão. Por sua linguagem acessível, a obra pode ser lida e compreendida tanto por acadêmicos quanto pelo público geral, conseguindo assim ser uma obra de interesse para os mais variados segmentos de nossa sociedade.

Através do romance, Santos consegue manter uma reflexão atual sobre os valores que por muito tempo foram recebidos como corretos e naturais na mentalidade brasileira sobre as relações senhor/escravo ao mesmo tempo em que capta as nuances da sociedade escravocrata sergipana do século XIX e suas tensões. O autor denuncia a visão “sub-humana” que a sociedade “construiu” sobre os negros, a qual, disseminada através dos anos como uma “verdade”, justificou o uso da violência, a negação de direitos e a manutenção da escravidão.

Santos também deixa o final indefinido, não registrando o fim real de Hilária e, se acaso ela houvesse escapado, qual seria seu paradeiro. Assim, permite aos leitores que utilizem sua imaginação para preencher esta lacuna, convidando-os a fazer o mesmo exercício imaginativo que ele mesmo fez diante dos documentos históricos. Ou seja, o autor dá ao leitor a liberdade de conceber ou inventar um “escrever seu final” para a história.

Por tudo isso, a obra é recomendada a todos os leitores, especialmente sergipanos, que encontrarão uma leitura leve e diferente, e terão a oportunidade de conhecer mais sobre a história do nosso Estado, por meio de uma estratégia diferente de contá-lo: uma narrativa que concilia história e literatura.

*Carolline Acioli Oliveira Andrade é graduanda em História pela Universidade Federal de Sergipe e aluna bolsista integrante do grupo PET História/UFS. Orientadora: Profª. Drª. Edna Matos Antonio. O artigo integra as colaborações à coluna do Grupo de Estudos do Tempo Presente (GET/CNPq/UFS).

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