* Artigo de Carolline Acioli Oliveira Andrade
O ano era 1849. Em São Cristóvão, capital de Sergipe, a sociedade está
em polvorosa diante dos últimos acontecimentos. O admirado escrivão
Bartholomeu José Correia Beija-Flor jaz em seu leito, fatalmente doente.
Beija-Flor era conhecido tanto por sua competência no trabalho, quanto
pela excentricidade de paladar, pois gostava de saborear quitutes os
mais diversos: guisado de muçurana, sariguê passado no óleo, cação
martelo com molho de vinagre, croquete de lesma e, um de seus favoritos,
fritada de jia com cozido de ovos de tartaruga. Foi após comer o “maná
jiático” que ele caiu de cama.
A família fez de tudo para aliviar as dores do convalescente, ninguém
sabia explicar a razão de todo aquele infortúnio. Até que, um dia, a
filha de Beija-Flor encontra um pó branco no chá que o pai estava
tomando. Imediatamente, conclui: o pai havia sido vítima de
envenenamento. A investigação começa, obstinada e decidida a encontrar
um culpado. E o bode expiatório acabou sendo a jovem negra Hilária, uma
escrava doméstica que trabalhava para a família Beija-Flor.
Hilária negava ter arquitetado a morte do seu senhor. O delegado, porém,
estava disposto a comprovar a culpa da negra. Hilária foi pressionada,
humilhada e espancada até que confessasse que havia colocado o veneno no
chá do seu senhor. Mas a história não termina aí. Os órgãos de
Beija-Flor foram levados a Salvador para um exame toxicológico. Este,
realizado por renomados legistas, comprovou que não havia nenhum
componente tóxico no corpo do falecido. Uma grande polêmica tomou a
cidade quando o laudo foi lido. Insatisfeitos, os acusadores da negra
retomaram o processo, decididos a invalidar o relatório da autópsia. O
delegado e o promotor colheram depoimentos de várias testemunhas e,
apesar de todas as contradições do processo e da dúvida sobre a
veracidade de alguns testemunhos, Hilária foi condenada a morte.
Longe de ser um conto fictício, toda essa trama foi real e está relatada
em forma de romance pelo historiador sergipano Pedrinho dos Santos na
obra intitulada “O Comedor de Jia”, de 2006. Em uma linguagem simples e
narração detalhista, o autor faz do curioso caso do comedor de jia um
fato que leva a sociedade sergipana atual a voltar-se para o passado e
refletir sobre sua própria história. O autor levanta uma crítica
veemente contra a presença do preconceito como um princípio social comum
e até mesmo justificável da escravidão. Por sua linguagem acessível, a
obra pode ser lida e compreendida tanto por acadêmicos quanto pelo
público geral, conseguindo assim ser uma obra de interesse para os mais
variados segmentos de nossa sociedade.
Através do romance, Santos consegue manter uma reflexão atual sobre os
valores que por muito tempo foram recebidos como corretos e naturais na
mentalidade brasileira sobre as relações senhor/escravo ao mesmo tempo
em que capta as nuances da sociedade escravocrata sergipana do século
XIX e suas tensões. O autor denuncia a visão “sub-humana” que a
sociedade “construiu” sobre os negros, a qual, disseminada através dos
anos como uma “verdade”, justificou o uso da violência, a negação de
direitos e a manutenção da escravidão.
Santos também deixa o final indefinido, não registrando o fim real de
Hilária e, se acaso ela houvesse escapado, qual seria seu paradeiro.
Assim, permite aos leitores que utilizem sua imaginação para preencher
esta lacuna, convidando-os a fazer o mesmo exercício imaginativo que ele
mesmo fez diante dos documentos históricos. Ou seja, o autor dá ao
leitor a liberdade de conceber ou inventar um “escrever seu final” para a
história.
Por tudo isso, a obra é recomendada a todos os leitores, especialmente
sergipanos, que encontrarão uma leitura leve e diferente, e terão a
oportunidade de conhecer mais sobre a história do nosso Estado, por meio
de uma estratégia diferente de contá-lo: uma narrativa que concilia
história e literatura.
*Carolline Acioli Oliveira Andrade é graduanda em História pela
Universidade Federal de Sergipe e aluna bolsista integrante do grupo PET
História/UFS. Orientadora: Profª. Drª. Edna Matos Antonio. O artigo
integra as colaborações à coluna do Grupo de Estudos do Tempo Presente
(GET/CNPq/UFS).